Não importa se você está na residência de Oftalmologia, ou se já está atuando nos consultórios da vida há pouco ou muito tempo, com certeza você passa frequentemente pela seguinte situação: o paciente vem ao retorno e te entrega o exame de campo visual Humphrey e te pergunta “e aí doutor(a), eu tenho glaucoma??”

Sabemos muito bem que não é tão simples assim responder essa pergunta, não é mesmo? A avaliação de um paciente suspeito de glaucoma ou mesmo com glaucoma já diagnosticado pode parecer um enigma no qual o campo visual é uma das pistas que pode te ajudar, mas você tem que saber decifrá-la!

Para conseguir responder a indagação do nosso querido paciente e fazer com que o paciente compreenda a importância de aderir ao acompanhamento com esse exame, o primeiro passo é ter segurança na hora de explicar sobre esse exame ao paciente. E pra que isso ocorra, é necessário que você, doutor(a) compreenda-o bem!

Pensando nisso, preparamos esse guia para ajudar os médicos que atuam em oftalmologia em todo o Brasil a melhorarem ainda mais a sua prática diária aumentando a sua expertise sobre esse exame tão importante para nós, que é o campo visual Humphrey. 

A figura abaixo vai nos ajudar a nos familiarizarmos com os principais conceitos do exame.

Exemplo de impresso de uma campimetria visual computadorizada Humphrey
Exemplo de impresso de uma campimetria visual computadorizada Humphrey
Fonte: Excellent Perimetry, 5th Edition, 2021, p. 08.

1º passo: Esse campo visual Humphrey é um exame confiável?

Estratégia de realização do exame
A estratégia de realização do exame diz respeito à forma como a sensibilidade de cada ponto do campo visual será pesquisada, podendo ser, por exemplo, a Full Threshold e a SITA, no campo visual Humphrey. Um exame Full Threshold 24×2 dura cerca de 12-14 minutos, enquanto um exame SITA Standard 24×2 dura cerca de 5 minutos. É importante saber disso pois caso o exame dure mais do que o esperado, é um indicativo de que o exame não foi muito confiável.

Programas de realização do exame
Os programas (30×2, 24×2, 10×2, etc.) referem-se à quantidade e localização dos pontos que serão testados. Na prática, o exame mais frequentemente solicitado é o SITA Standard 24×2. Principalmente em pacientes com dificuldade de realização do exame, podemos lançar mão das estratégias Fast ou Faster, ao invés do Standard, por serem de mais rápida execução (em torno de 3 minutos), evitando a fadiga do paciente. 

É importante saber que os programas 30×2 e 24×2 avaliam somente 12 pontos dentro dos 10 graus centrais do campo visual, enquanto o programa 10×2 avalia 68. Em pacientes que tem somente uma ilha de visão central, como em glaucomas avançados, precisamos utilizar o programa 10×2 para avaliar melhor essa área.

Índices de confiabilidade
A campimetria é um exame subjetivo, ou seja, depende da informação dada pelo paciente. Devido a isso, existem os índices de confiabilidade, que nos ajudam a saber se a resposta do paciente foi confiável, ou não.

Perda de fixação (fixation losses): < 20%
Uma das formas de se detectar perda de fixação do paciente durante o exame é projetando um estímulo na região da mancha cega, onde o paciente não deveria vê-lo. Caso o paciente responda ao estímulo, significa que ele perdeu a fixação

Falsos positivos (False POS Errors): < 33% (na prática considera-se atualmente 15%)
As respostas falso-positivas são as que ocorrem quando o paciente responde a um estímulo não apresentado.

Falsos negativos (False NEG Errors): < 33% (na prática considera-se atualmente 15%)
A resposta falso-negativa corresponde à ausência de resposta a um estímulo que deveria ter sido visto, pois o paciente já visualizou estímulo mais fraco nesse mesmo ponto.

Duração do teste (Test Duration)
Depende da estratégia. SITA Standard 24×2 geralmente dura cerca de 5 minutos. SITA fast 24×2 dura cerca de 3 minutos.

Gráfico do monitor do olhar (Gaze tracking record)
Os traços acima da linha horizontal significam que o paciente desviou o olhar. Traços abaixo da linha horizontal significam que possivelmente o paciente piscou.

2º passo: Entenda o que os gráficos querem dizer

Começando pelo mais intuitivo, que é o GRÁFICO DE TONS DE CINZA (grayscale map). Esse gráfico é a representação visual do gráfico que fica à sua esquerda, que é o GRÁFICO NUMÉRICO (threshold values).  Quanto mais escuro o cinza, mais denso é o escotoma (menor a sensibilidade ao estímulo luminoso naquele ponto).

O GRÁFICO NUMÉRICO é a sensibilidade em decibéis de cada ponto pesquisado.

Agora vamos aos que causam mais confusão: TOTAL DEVIATION (ou DESVIO TOTAL) e PATTERN DEVIATION (ou MODELO DE DESVIO). Observe que esses dois são representados por um gráfico numérico (numerical map) e um gráfico de probabilidades (probability map).

TOTAL DEVIATION:

Compara o campo visual do paciente com o de outras pessoas da mesma faixa etária.

O gráfico numérico (superior) apresenta os valores “brutos” dessa diferença entre a sensibilidade do paciente e o que seria esperado pra alguém da idade dele. Exemplo: se o valor é -1, significa que naquele ponto a sensibilidade do paciente foi 1 dB abaixo do esperado.

O gráfico de probabilidades (inferior) representa a probabilidade dessa diferença de sensibilidade ser normal.

Atenção! O Total Deviation é influenciado por opacidade de meios, erros refracionais e pupilas mióticas. Quando isso ocorre, todos os valores numéricos estarão reduzidos.

PATTERN DEVIATION:

É o ajuste dos valores na tentativa de anular essas causas de redução generalizada da sensibilidade, facilitando a detecção de defeitos localizados reais.

O gráfico numérico (superior) representa a diferença entre os valores em decibéis de sensibilidade dos pontos testados e os valores ajustados.

O gráfico de probabilidades (inferior) representa a probabilidade de esses valores serem normais.

Em relação às probabilidades, note que existe uma legenda pra te ajudar abaixo dos gráficos. Exemplo: se você vê um quadradinho totalmente preto, a probabilidade da sensibilidade desse ponto no exame desse paciente ser normal para a faixa etária dele é menor que 0,5%.

3º passo: Entenda os índices globais

  • MD (mean deviation): é a média dos valores do gráfico numérico Total Deviation, sendo que a região central é mais valorizada. Se o valor for positivo, isso significa que a sensibilidade média desse paciente foi acima do normal. Se for negativo, quer dizer que a sensibilidade média foi abaixo do normal.
  • PSD (pattern standard deviation): é o desvio padrão da média dos valores do gráfico numérico Pattern Deviation. Não precisa se assustar! Isso quer dizer somente que o PSD mostra se os valores numéricos do gráfico Pattern Deviation são mais ou menos semelhantes, ou muito discrepantes entre si. Dessa forma, o PSD vai ser próximo de zero em pacientes com um campo visual normal (todos os pontos são normais), e também em um paciente com um glaucoma muito avançado (todos os pontos são alterados). Já em um paciente com somente um escotoma paracentral, o PSD será um valor positivo elevado.
  • VFI (visual field index): varia de 0% (cegueira perimétrica) a 100% (visão normal). Faz uma avaliação semelhante ao MD, mas menos afetado por opacidades de meio.
  • GHT (glaucoma hemifield test): compara 5 zonas do campo superior com as 5 zonas correspondentes do campo inferior. Pode apresentar 5 respostas: within normal limits (normal), borderline (limítrofe), outside normal limits (anormal), general reduction of sensitivity (redução geral da sensibilidade), abnormally high sensitivity (sensibilidade anormalmente elevada).

4º passo: Reconheça os artefatos

Efeito do aprendizado (figura 2): duração excessiva do tempo de exame e redução geral da sensibilidade.

Borda de lente (figura 3): mudança brusca da sensibilidade (<0 dB) na periferia do campo. Isso acontece quando o paciente está posicionado longe das lentes corretoras do aparelho.

Figura 3: Borda de lente.
Fonte: BCSC 2019-2020, vol. 10: Glaucoma p. 86.

Pálpebra superior (figura 4): defeito superior e não arqueado.

Figura 4: artefato causado por ptose palpebral.
Fonte: Excellent Perimetry, 5th Edition, 2021, p. 213.

Trevo de 4 folhas (figura 5): os pontos centrais, do início do teste, tem sensibilidade normal, mas os pontos periféricos, do final do teste, apresentam sensibilidade baixa. Isso se dá muitas vezes pelo cansaço do paciente ao longo do exame e está associado à resposta falso-negativa corresponde à ausência de resposta à um estímulo que deveria ter sido visto, pois o paciente já visualizou estímulo mais fraco nesse mesmo ponto.

Figura 5: Trevo de 4 folhas: exame não confiável.
Fonte: BCSC 2019-2020, vol. 10: Glaucoma, p. 86.

Escotoma branco (figura 6): ocorre quando o aparelho detecta sensibilidades muito altas nos pontos testados, ou seja, quando o paciente apertou excessivamente o botão do aparelho. Está associado ao excesso de respostas falso-positivas. 

Figura 6: escotoma branco.
Fonte: BCSC 2019-2020, vol. 10: Glaucoma, p. 87.

5º passo: Reconheça os padrões de escotomas

Glaucomatosos:

Degrau nasal (figura 7)

Figura 7: degrau nasal
Fonte: BCSC 2019-2020, vol. 05: Neuro-Ophthalmology p. 170.

Defeito paracentral (figura 8)

Figura 8: Defeito paracentral
Fonte: BCSC 2019-2020, vol. 10: Glaucoma, p. 91.

Escotoma arqueado (figura 9)
representa lesão das fibras nervosas da retina. Pode acontecer em outras doenças além do glaucoma que afetem essas fibras (drusas de disco óptico, cicatrizes retinianas, oclusões vasculares, por exemplo).

Figura 9: Escotoma arqueado
Fonte: BCSC 2019-2020, vol. 10: Glaucoma, p. 89.

Neuroftalmológicos

Altitudinal (figura 10)
Defeito típico da neuropatia óptica isquêmica anterior.

Figura 10: Defeito altitudinal
Fonte: BCSC 2019-2020, vol. 05: Neuro-Ophthalmology p. 133.

Aumento da mancha cega (figura 11)
Representa disfunção da retina peripapilar, por exemplo, edema de disco.

Figura 11: Aumento da mancha cega.
Fonte: BCSC 2019-2020, vol. 05: Neuro-Ophthalmology p. 128.

Hemianopsia bitemporal (figura 12)
Representa lesão quiasmática

Figura 12: Hemianopsia bitemporal
Fonte: BCSC 2019-2020, vol. 05: Neuro-Ophthalmology p. 179.

Hemianopsia homônima (figura 13)
Representa lesão retroquiasmática

Figura 13: Hemianopsia homônima. Nesse caso poupando a fixação. A causa é um infarto occipital.
Fonte: BCSC 2019-2020, vol. 05: Neurophthalmology p. 187.

Cecocentral (figura 14)
Defeito típico de pacientes com neuropatias tóxicas e carenciais,  neuropatia óptica hereditária de Leber e neurite óptica.

Figura 14: Escotoma cecocentral.
Fonte: BCSC 2019-2020, vol. 05: Neuro-Ophthalmology p. 133.

Para aprofundar nos estudos:

Perimetria computadorizada: um guia prático de interpretação, 4 ed. 2017, Ed. Cultura Médica.

Author

Médica formada pela Universidade Federal de Goiás. Residência Médica em Oftalmologia no Centro de Referência em Oftalmologia da Universidade Federal de Goiás. Fellowship em Glaucoma clínico e cirúrgico no Centro de Referência em Oftalmologia da Universidade Federal de Goiás.

3 Comentários

  1. Juliana Costa Reply

    Boa tarde, a lei que define que uma pessoa é PCD, para contrato de trabalho diz o seguinte: Quanto ao campo visual, que é a área de visão lateral, superior e inferior que se pode
    enxergar ao olhar em frente, a referência legal é de que seja menor ou igual a 60°. Não é um
    percentual, mas uma medida de ângulos de visão.
    Sendo assim, o exame complementar denominado Campimetria é necessário, assim
    como o laudo do oftalmologista declarando qual é o somatório do campo visual em graus, já
    que é um exame de difícil interpretação por outros profissionais.
    Sendo assim, uma pessoa que normal enxergaria 360 graus? 180 acima da linha horizontal e 180 abaixo? E uma pessoa que não enxerga um dos 4 quadrantes enxergaria apenas 225 graus? É mais ou menos isso?

  2. Adriana Pinto Guedes Reply

    Meu campo visual deu
    OD
    VFI;86%
    MD24-2:-8,29 dB P<0,5%
    PSD24-2:8,83 dB P<0,5%
    OE
    VFI:79%
    MD24-2:-9,83 dB P <0,5%
    PSD24-2:9,57 dB P<0,5%
    GHF:Outside normal Limits queria saber quantos graus tenho de visão

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