A ceratite herpética é uma doença relativamente comum no dia-a-dia do oftalmologista, porém acontece de passarmos um certo tempo sem ver um caso e quando ele chega, vem à tona dúvidas como qual é a dose do aciclovir! Pensando nisso, preparamos esse conteúdo para auxiliar nosso colegas oftalmologistas a conduzir esses casos de forma atualizada e baseada em evidências.

DEFINIÇÃO

As manifestações oculares causadas pelo Herpes podem ser divididas em basicamente três formas:

  • Infecciosa (blefaroconjuntivite vesicular, ceratite epitelial dendrítica ou geográfica);
  • Inflamatória (ceratite estromal imune, endotelite);
  • Mista (ceratite estromal necrosante, irite ou ceratouveite).

QUADRO CLÍNICO

Ceratite herpética epitelial dendrítica e Úlcera geográfica

A ceratite herpética epitelial é resultado da ação direta do vírus. Ela se apresenta inicialmente como ceratite e vesículas epiteliais que se coalescem e formam lesões elevadas, arboriformes, eventualmente ulcerando. Esse processo resulta em defeito epitelial linear com bulbos em suas terminações, assim chamados de dendritos verdadeiros. Essa é a manifestação mais clássica da doença (figura 1)

Ceratite herpética dendritos
Figura 1: Ceratite herpética epitelial dendrítica.
Fonte: Krachmer et al, Cornea, 3 ed. p. 924.

Com a evolução desse quadro, interrompe-se a ação direta do vírus, porém a sensibilidade nervosa da córnea, mais precisamente no gânglio sensorial do trigêmeo, pode ser prejudicada de tal forma que a lesão expande formando úlceras geográficas de difícil cicatrização, que também é chamada de úlcera neurotrófica (figura 2).

Úlcera neurotrófica herpes
Figura 2: Úlcera neurotrófica.
Fonte: Krachmer et al, Cornea, 3 ed. p. 928.

Ceratite herpética estromal necrosante

A ceratite estromal necrosante herpética (figura 3) é uma forma mista da doença, cuja patogênese parece estar relacionada com a combinação de replicação viral ativa e reação de hipersensibilidade do tipo III (imunocomplexo, antígeno, anticorpo e complemento) ao antígeno viral presente no estroma. É a forma menos comum, mas a mais agressiva.

Essa ceratite herpética apresenta-se com inflamação corneana supurativa, comumente com ulceração do epitélio de forma excêntrica à lesão estromal (as bordas da úlcera não coincidem com a infiltração do estroma)  e com vascularização estromal. Clinicamente, pode ser indistinguível de ceratites bacterianas, fúngicas ou por Acanthamoeba, sendo seu diagnóstico frequentemente feito após exclusão por culturas negativas para fungos e bactérias.

Ceratite herpética necrosante
Figura 3: Ceratite herpética estromal necrotizante.
Fonte: BCSC 2020-2021: External Disease and Cornea, p. 238.

Ceratite herpética estromal não necrosante

A ceratite herpética estromal não necrosante ou imune (figura 4), como o próprio nome já indica, é considerada uma forma inflamatória da doença, causada por reação inflamatória do sistema imune às partículas virais.

Nessa ceratite herpética há acometimento primário do estroma com infiltração puntiforme, focal ou multifocal, edema focal ou difuso e pode apresentar o anel imunológico ou anel de Wessely. Com o tempo pode evoluir com neovascularização e cicatrização do estroma com importante prejuízo visual. 

Ceratite estromal imune herpes
Figura 4: Ceratite herpética estromal imune. Os achados ao exame são: inflamação estromal, cicatriz residual, neovascularização e depósito de lipídios.
Fonte: Krachmer et al, Cornea, 3 ed. p. 931.

Endotelite herpética

Na endotelite (figura 5) o edema é caracteristicamente disciforme, mas também pode ser linear ou difuso, e sem infiltração estromal. Ao exame, apresenta precipitados ceráticos, dobras de descemet e reação de câmara anterior. O olho permanece calmo com inflamação localizada inicialmente no endotélio. Não há atividade viral e nem acometimento do epitélio.

Endotelite herpetica
Figura 5: Endotelite herpética disciforme.
Fonte: Krachmer et al, Cornea, 3 ed. p. 934.

TRATAMENTO

Formas infecciosas (Ceratite epitelial dendrítica ou geográfica)

O tratamento das formas infecciosas de ceratite herpética consiste no uso de antivirais, sendo o mais comum o Aciclovir 400mg 5x/dia (2g/dia), Valaciclovir 500mg 8/8h (1,5g/dia), Fanciclovir 250 2x/dia (500mg/dia). 

O Valaciclovir e o Fanciclovir são pró-drogas do Aciclovir, com melhor absorção intestinal, mas mantendo a mesma eficácia. 

Essas drogas necessitam de ajuste de dose para pacientes com insuficiência renal, já que a eliminação é renal.

Úlcera neurotrófica

O tratamento da úlcera neurotrófica envolve lubrificação intensa (colírio sem conservante e gel), curativo oclusivo ou lente de contato terapêutica, podendo ser necessária a realização de tarsorrafia e até recobrimento conjuntival. Colírio derivado do soro autólogo pode ser indicado para a tentativa de ajudar na cicatrização do epitélio.

Formas inflamatórias (Endotelite ou Ceratite estromal imune)

O tratamento desta apresentação é com colírio derivado de esteroide tópico associado ao aciclovir sistêmico em dose profilática, para prevenir ceratite epitelial severa. A profilaxia antiviral deve ser mantida enquanto o paciente estiver usando o corticosteroide tópico.

Prednisolona 1% 2/2h com desmame a cada 1-2 semanas

Aciclovir 800mg/dia ou Valaciclovir 500 mg/dia

Formas mistas (Ceratite estromal necrosante)

Nas formas mistas, também utilizamos os antivirais associados ao corticoide para controle do quadro. A ceratite estromal necrosante é muito sensível ao corticosteroide tópico, e o uso 2 vezes ao dia pode ser suficiente para o controle da inflamação em boa parte dos pacientes.

PROFILAXIA

O uso do antiviral em dose profilática administrado por longo período (doze meses) foi capaz de reduzir a recorrência da infecção ocular herpética nas formas epiteliais e estromais da doença, segundo o Herpetic Eye Disease Study.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BCSC 2020-2021: External Disease and Cornea, p. 238.

Krachmer et al, Cornea: Fundamentals, Diagnosis and Management, 3 ed.

Author

Médica formada pela Universidade Federal de Goiás. Residência Médica em Oftalmologia no Centro de Referência em Oftalmologia da Universidade Federal de Goiás. Fellowship em Glaucoma clínico e cirúrgico no Centro de Referência em Oftalmologia da Universidade Federal de Goiás.

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