A toxoplasmose é a uveíte posterior mais comum no Brasil. Sendo assim, é algo que faz parte da nossa rotina desde o início da residência médica. Com esse conteúdo, nosso objetivo é principalmente servir de consulta prática para revisão e especialmente para a prescrição do tratamento.

DEFINIÇÃO

Vamos relembrar brevemente o ciclo do parasito causador da Toxoplasmose, o que nos ajuda a entender e também a explicar aos pacientes sobre as formas de contágio e evolução clínica. O hospedeiro suscetível se contamina ao ingerir oocistos maduros ou ao entrar em contato com taquizoítos (eliminados na urina, leite, esperma e perdigotos) ou ao ingerir carne crua ou mal cozida contendo taquizoítos ou cistos com bradizoítos. Os parasitas que sobrevivem ao suco gástrico penetram no sangue e irão se espalhar e reproduzir nas mais diversas células do organismo (fase aguda). Após o controle imunológico, permanecem em fase cística tecidual (fase crônica), podendo haver recidivas a depender do estado imunológico.

QUADRO CLÍNICO

  • Crianças com toxoplasmose ocular podem se apresentar com queixa de baixa visão, estrabismo, nistagmo ou leucocoria.
  • Adultos podem se apresentar com queixa de baixa visão, moscas volantes, dor ocular, fotofobia e hiperemia conjuntival.
  • 2/3 dos pacientes com toxoplasmose ocular podem apresentar recorrência.

EXAME FÍSICO DA TOXOPLASMOSE OCULAR

Forma típica: Retinocoroidite

A toxoplasmose ocular pode se apresentar mais classicamente como lesão retiniana exsudativa, única ou múltipla (retinocoroidite granulomatosa focal necrosante). O aspecto de “farol na neblina” é típico (figura 1). No segmento anterior pode haver reação de câmara anterior, precipitados ceráticos (incluindo mutton-fat), nódulos irianos e sinéquias posteriores. O quadro é auto limitado (6-8 semanas).

Toxoplasemos ocular - farol em neblina vitreite
Figura 1: Aspecto clássico de “farol na neblina” em um caso de retinocoroidite por toxoxplasmose.
Fonte: BCSC 2020-2021: Uveitis and ocular inflammation, p. 278.

Após a resolução do quadro ativo da toxoplasmose, forma-se uma cicatriz, de margens bem delimitadas, com vários graus de hiperplasia do epitélio pigmentado da retina e com atrofia retinocoroideana. A cicatrização ocorre da periferia para o centro.

A presença de uma lesão satélite (figura 2) sugere fortemente o diagnóstico de toxoplasmose ocular (proximidade de uma lesão cicatrizada próxima à ativa).

Lesão satélite toxoplasmose ocular
Figura 2: Lesão satélite em um quadro de toxoplasmose ocular ativa.
Fonte: BCSC 2020-2021: Uveitis and ocular inflammation, p. 278.

Existem outras formas de apresentação da toxoplasmose ocular adquirida, que são ditas atípicas.

Elas incluem: retinite punctata externa; neurorretinite; neurite; forma pseudomúltipla ou ainda reações inflamatórias intraoculares sem lesão focal posterior necrosante em pacientes com toxoplasmose adquirida sistêmica.

Puntata externa

  • Pequenas lesões branco-acinzentadas, multifocais, ao nível da retina externa e EPR (figura 3).
  • Caráter recorrente
  • Vitreíte leve
  • Acometimento grave do nervo óptico, com palidez intensa
  • Ocorre geralmente nas primeiras e segunda décadas de vida
  • Congênita ou adquirida
  • Bilateral em 1/3 dos casos
  • Diagnóstico diferencial de neurorretinite subaguda unilateral difusa (DUSN)
Toxoplasmose ocular puntata puncttata externa
Figura 3: Toxoplasmose ocular atípica: forma punctata externa. Note as pequenas lesões em diferentes estágios de cicatrização e a palidez do disco óptico.
Fonte: Série Oftalmologia Brasileira, Uveítes, 3 ed, p. 155.

Neurorretinite por toxoplasmose

  • Inicia-se como papilite isolada e após alguns dias evolui com foco de retinocoroidite justadiscal
  • Diagnóstico diferencial com a doença da arranhadura do gato.

COMPLICAÇÕES DA TOXOPLASMOSE OCULAR

  • Glaucoma
  • Catarata
  • Vitreíte crônica
  • Hemorragias vítreas por avulsão de vasos causada pela retração do vítreo
  • Hemorragias retinianas por oclusão de veias adjacentes à lesões em atividade
  • Atrofia óptica
  • Edema macular cistoide
  • Buraco macular
  • Membrana epirretiniana
  • Phthisis bulbi

DIAGNÓSTICO

  • Os testes sorológicos são úteis para auxiliar no diagnóstico de toxoplasmose ocular, já que o resultado negativo pode descartar a hipótese, mas o positivo não confirma o diagnóstico pela alta prevalência dos anticorpos na população. IgG fica positivo após 2 semanas da infecção e geralmente se mantém positivo durante toda a vida. Já o IgM pode permanecer detectável até 1 ano após a infecção.
  • Angiofluoresceinografia, OCT e ecografia podem ser úteis em casos de toxoplasmose ocular com complicações.

TRATAMENTO

Segundo a Sociedade Brasileira de Uveítes, os critérios para tratamento da toxoplasmose ocular adquirida são:

  • Ameaça de áreas nobres (mácula, região perimacular, disco óptico e região peridiscal)
  • Vitreíte intensa
  • Inflamação intensa
  • Lesões crônicas e exsudativas extensas, independente da localização

Apesar disso, é habitual o tratamento em todos os casos diagnosticados de toxoplasmose ocular. O tratamento tem o benefício de reduzir a duração da replicação do parasita, levando a uma cicatrização mais rápida, menor cicatriz, reduzir a frequência de recorrências e minimizar complicações.

O preconizado pelo CBO como primeira opção é o dito “tratamento clássico” da toxoplasmose, composto por: sulfadiazina + pirimetamina + ácido folínico + prednisona.

  1. Sulfadiazina 500 mg, 2 cp de 6/6h durante 35 dias. Crianças: 50 a 100 mg/kg/dia.
  2. Pirimetamina 25 mg. Iniciar com dose de ataque de 4 cp no primeiro dia, 3 cp no segundo dia, seguida por 2 cp/dia por 45 dias. Criança: 1 mg/kg/dia.
  3. Ácido folínico 15 mg, 1 cp por dia por 45 dias.
  4. Prednisona 20 mg. Iniciar junto com o tratamento específico com 0,5 mg/kg/dia, reduzindo 10 mg a cada 6 dias até finalizar 10 dias antes do término do tratamento específico.

Porém, diversos serviços no Brasil adotam o Bactrim F® (sulfametoxazol + trimetoprima) como escolha para o tratamento da toxoplasmose ocular, por diversos motivos: melhor adesão do paciente ao tratamento; menos efeitos colaterais, principalmente gastrointestinais; maior facilidade de encontrar a medicação para compra. Porém, segundo o CBO, ele se torna primeira escolha para profilaxia, e não para tratamento. 

Sulfametoxazol + Trimetoprima 800/160 – 1 cp de 12/12h durante 30 a 40 dias.

Em caso de intolerância à sulfadiazina, utilizar em associação à pirimetamina a:

Clindamicina 300 mg 1 cp 6/6h por 30-40 dias. Obs.: risco de colite pseudomembranosa durante o tratamento ou mesmo após a suspensão do mesmo.

O esquema de tratamento para gestantes será diferente conforme o trimestre da gestação:

  • 1º trimestre: espiramicina + sulfadiazina. 
  • 2º trimestre: espiramicina + sulfadiazina + pirimetamina + ácido folínico (após 14ª semana);
  • 3º trimestre: espiramicina + pirimetamina + ácido folínico

Espiramicina 1,5 mUI 6/6h durante 30 a 40 dias.

A espiramicina pode ser utilizada em toda a gestação justamente por não atravessar a placenta e não provocar efeitos colaterais indesejáveis ao feto, sendo como propósito principal de impedir ou retardar a passagem do toxoplasma para o feto.

Tratamento profilático

Indicado em caso de lesões recidivantes de toxoplasmose ocular.

Bactrim F 1 cp por dia (segunda, quarta e sexta-feira) durante 1 ano.

EFEITOS ADVERSOS DOS MEDICAMENTOS

  • Sulfadiazina: derivado de sulfa que apresenta semelhança estrutural e antagonismo competitivo ao ácido paraminobezoico (PABA), impedindo sua utilização pelo parasita causador da toxoplasmose ocular na síntese do ácido fólico, tendo efeito sinérgico à pirimetamina. A sulfa pode apresentar deposição urinária, resultando em cálculos renais, cólica renal e hematúria; raramente pode gerar anemia hemolítica aguda, principalmente em crianças; agranulocitose; anemia aplástica; reações de hipersensibilidade; síndrome de Stevens-Johnson; hepatite e hipotireoidismo. É contra-indicada no terceiro trimestre da gestação. Caso haja efeitos colaterais genitourinários, deve-se estimular a ingesta hídrica e alcalinizar a urina.
  • Pirimetamina: interrompe o ciclo metabólico do parasita causador da toxoplasmose ocular por inibir a enzima diidrofolatorredutase, impedindo a conversão de ácido fólico em ácido folínico. Portanto, deve ser usado juntamente com ácido folínico para reposição do mesmo. Pode causar, náuseas, vômitos, dor abdominal, perda de peso e da gustação, reação alérgica e depressão da medula óssea (10% dos casos). Deve ser suspenso caso hajam algum problema hematológico e é contraindicado no primeiro trimestre da gestação e na lactação. 
  • Clindamicina: antibiótico da classe das lincosamidas, tendo efeito principalmente bacteriostático (pode ser bactericida em concentrações maiores) por inibir a síntese proteica ligando-se à sub-unidade 50s do ribossomo. Nos pacientes com toxoplasmose ocular, é uma droga alternativa, usada em associação à pirimetamina, em casos de intolerância à sulfadiazina. Pode causar diarreia, exantema e mais gravemente colite pseudomembranosa, que pode surgir durante ou semanas após o tratamento, podendo ser fatal. Em caso de colite, deve ser suspensa imediatamente, podendo ser substituída por vancomicina.
  • Sulfametoxazol-trimetoprima: a sulfonamida age impedindo a incorporação do PABA no ácido fólico e a trimetoprina impede a redução do diidrofolato em tetraidrofolato. Como efeito colaterais temos: anemia megaloblástica, leucopenia e trombocitopenia em caso de deficiência de folato, síndrome de Stevens-Johnson, icterícia, cefaleia, náuseas, vômitos, estomatite e comprometimento renal. Pode ser utilizada como único antibiótico em esquema de tratamento associado a prednisona.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Série Oftalmologia Brasileira, Uveítes, 3 ed.

BCSC 2020-2021: Uveitis and ocular inflammation.

Author

Médica formada pela Universidade Federal de Goiás. Residência Médica em Oftalmologia no Centro de Referência em Oftalmologia da Universidade Federal de Goiás. Fellowship em Glaucoma clínico e cirúrgico no Centro de Referência em Oftalmologia da Universidade Federal de Goiás.

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